Horizontes nº 2 – Chatinho e a inspiração humana

“Era como se o tempo dobrasse suavemente, sem pressa, quando as mãos enrugadas encontravam as mais jovens.

Ali, naquele instante de silêncio e troca, existia algo maior do que palavras: um entendimento profundo de que cada geração trazia consigo uma parte da história que a outra precisava ouvir, sentir e guardar.

A avó falava devagar, saboreando as memórias como quem saboreia o aroma de café recém passado, e os netos, curiosos e atentos, absorviam aquelas histórias como se fossem mapas de um tesouro.

As palavras carregavam mais do que lições; traziam vida, lembranças de um tempo onde brincar na rua era sinônimo de liberdade, e os sonhos tinham o cheiro das estações, do alecrim ao frescor da chuva.

E, assim, de histórias aparentemente simples, nascia um entendimento.

Os mais jovens aprendiam que o tempo é generoso quando o compartilhamos, que a paciência não é uma obrigação, mas um presente. E os mais velhos, revivendo as aventuras da juventude, descobriam um frescor esquecido, como se as rugas se desfizessem por instantes, transformando-se em sorrisos.

Era nessa interação que o ciclo da vida se completava. O futuro, nas palavras de quem tinha vivido tanto, parecia mais sábio, mais compassivo.

E o que mais  bonito havia nisso tudo?

O fato de que, de geração em geração, as lições não estavam nos conselhos, mas no carinho, no riso, e na cumplicidade silenciosa que atravessava o tempo”.

Olhou aquele texto pasteurizado a sua frente sem saber se tomava um rivotril ou se mandava o tal chatinho longe. Chatinho era como chamava o tal Chat de inteligência artificial neste ano de 2024. Tudo bem que era um auxiliar interessante para tarefas chatas. Mas resolveu testar para ver como se saia com textos mais personalizados e o abasteceu com escritos seus. Pediu para escrever algo que tivesse a sua personalidade. E saiu isso.

Ficou preocupada. Seria ela tão rasa assim no que escrevia? Usava de tantos clichês tão piegas como o que lia lhe sugeria?

Desde que se conhecia por gente gostava de escrever. Lia muito é verdade. Ganhara prêmios e elogios por redações na época do colégio. Nas redes sociais escrevia por catarse. Por necessidade pungente de colocar para fora o que assomava por dentro. Os amigos elogiavam e diziam: escreve um livro!

Escreveu dois. Poucos compraram.

Resolveu fazer cursos de escrita. Começou a olhar para a sua produção com olhos de crítica. Passou a escrever menos. Ás vezes se enchia de coragem e mandava algo para alguém. A não resposta era resposta.

Quando surgiram as Inteligências Artificiais escritoras fez várias experiências. Quem sabe não seriam solução para a falta de inspiração? Para textos técnicos era interessante, embora tivesse que checar cada ponto porque não eram de todo confiáveis aqueles retornos. Várias vezes se irritou com a falta de credibilidade da IA. Entrou em debates filosóficos que terminavam com um mutismo dizendo: vamos mudar de assunto. IA mais humana essa!!

Leu em uma dessas redes sociais especializadas em estorinhas para vender qualquer coisa, as famosas story telling, que o chatinho poderia ser abastecido com textos da gente e ele poderia nos assimilar como estilo de escrita.

Perguntei educadamente se poderia fazer isso:

– Sim, Mariana, ele me respondeu.

Não me chamo Mariana. Devo ter dito isso em alguma pergunta. Mas na minha vã ignorância achei que, se inteligente era, deveria saber inclusive meu nome que consta do login. Qual o quê! Me saiu isso daí de cima.

…”E os mais velhos, revivendo as aventuras da juventude, descobriam um frescor esquecido, como se as rugas se desfizessem por instantes, transformando-se em sorrisos.”

Frescor esquecido, rugas se transformando em sorrisos…que coisa mais pobre para se escrever sobre a aventura de envelhecer.

Cada angústia, cada descoberta. Cada dor doída, esperança arrancada  feito parto forçado. Paridas em dias e noites de respiros, de lágrimas, de suspiros. De novas esperanças. Novas desesperanças. Algumas risadas. Outras esquecidas de si para resultar em noites de insônia.

Quem me vê assim, aparentemente bem resolvida, não sabe de nada. Cada cabeça grisalha que passa na rua, passo trôpego ou mais alerta, é um universo de achados e perdidos. Em cada tristeza de abandono e olhar perdido ao passado mora uma criança desamparada. Atrás de toda vitória e grito de gol reside um eito de lutas. Cada um, uma enciclopédia.

A vida, meu caro chatinho, é mais que uma reunião de algoritmos com moral positiva. A inspiração é mais que uma reunião de palavras por mais que os dados as apontem como corretas. A arte se faz de quem subverte as normas. O que não está escrito em livros e muito menos em banco de dados.

Envelhecer é arte solitária embora compartilhada. É mais ou menos como amar. Se envelhece trilhando rotas e vivendo cada dia a mais. O relógio contando cada vez mais rápido. E as gerações? Algumas em sintonia. Outras, muitas, em seus mundos e vivendo uma vida que não conta com pessoas mais idosas. O mundo prescinde de sabedoria.

Até quando?


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