O esquecimento mata

Impactou-me o que escreveu a brasileira Sônia Zaghetto sobre as mortes de Gene Hackmann e de sua esposa Betsy Arakawa:

“O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?”

Está num texto primoroso para discutir o envelhecer, seja nos EUA como no Brasil..

Estou lendo também “A VELHICE” de Simone de Beauvoir, de 1970, de igual forma estou impactado.

Sou do Coletivo “Metamorfose da vida” e do “Movimento Sociedade sem Idadismo”, logo o tema não me é estranho. Porém, mesmo assim, me impactou. São textos profundos, muito sérios.

Quando saiu a notícia da morte de Gene e Betsy, achados dias depois, poderíamos pensar em suicídio ou assassinato. Não, eles morreram de “morte natural”.

Nossa autora, Sônia Zaghetto – https://soniazaghetto.com/ — diz que Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater: “Teve fome. Teve sede. E ninguém veio”.

Gene tinha três filhos. Era casado em segundas núpcias com a pianista Betsy.

Gene ganhou dois Oscars e era uma figura da filmografia mundial.

Ele reconheceu certa feita que a carreira no cinema o afastou do convívio familiar; que o sucesso o tornou “egoísta” e impulsionou o fim de seu primeiro casamento, como afetou seu relacionamento com os filhos.

A filha caçula, Leslie Hackman, revelou em entrevista que não mantinha contato com o pai há vários meses.

“Meses”! Como explicar que uma filha sabendo que seu pai tinha 95 anos, sofria de Alzheimer, não ligasse para sua casa.  Betsy, a madrasta, era mais nova, era senhora “do seu nariz” para saber algo e atender. E os outros dois filhos?  Não tenho dados sobre possíveis netos ou outros familiares.

Na verdade, Gene morreu de esquecimento. Esta foi sua verdadeira morte.

O esquecimento mata! Eis a questão!

Gene Hackmann morreu sozinho. Sua doença o impedia de saber de si e não tinha condições de buscar auxílio. Nem os vizinhos do famoso ator baterem à porta. Nenhum amigo ligou. Nenhum familiar estranhou falta de notícias, tampouco se importavam em saber dele e da esposa. Betsy tinha parentes? Nada foi noticiado.

“Normal” as pessoas idosas estarem sozinhas e sem contato? “Normal” não é, mas acontece muito e cada vez mais.

Betsy morreu dias antes dele. Talvez Gene tenha vagado e nem visto a esposa morta. Ela morreu primeiro: hantavírus. Uma doença rara, transmitida pelo pó das fezes de roedores. Sonia Zaghetto diz: “Pouco antes ela foi à farmácia e levou o cãozinho ao veterinário. Não sabia que aquelas eram suas horas finais, que seria abatida por algo mortal carregado pela poeira invisível, das coisas que existem e não se veem. Um dia ela estava ali, no outro não. Talvez tenha passado a manhã dobrando roupas. Talvez tenha planejado o jantar. E então veio a febre, o cansaço, o nada. De repente, o fim. Fulminante, sem aviso, sem tempo para despedidas e providências”.

É certo que Gene deve ter zanzado pela casa, por sei lá em que lugares, sem nada entender. Nada podemos saber apenas supor, conhecendo um pouco desta terrível doença.

O certo é que os filhos não ligaram. Os vizinhos não bateram á porta. Ninguém veio.

Ninguém que conheceu ou sabia de Gene e Betsy se perguntou se estavam bem, vivendo naquele espaço. Às vezes, as pessoas optam pela solitude, mas ninguém busca a solidão. Em geral, a solidão toma conta das pessoas.

Um casal com suas condições financeiras, com filhos vivos, não teria cuidadores e/ou enfermeiros para olhar e tratar deles?

Não estamos tratando de um caso isolado. Existem milhares de casos assim.

Pior ainda, quando as pessoas idosas vivem largadas, isolados, descartadas, filhos e parentes se lembram deles no dia em que “cai a aposentadoria” na conta para pegar o cartão ou tirar o cartão deles e “raspar” suas contas.

Quando acontece um fato que chama nossa atenção, quando a mídia não para de tratar do assunto, a gente fica pensando que isto poderia ser um elemento detonador de mais consciência, de mudanças nas mentalidades das pessoas e até dos governos.

Mas o Tempo tem-nos mostrado que pouco ou nada muda. Pelo contrário, o que estamos vendo é que com a dimensão do “mundo líquido”, dos “tempos líquidos”, da diluição dos laços de família, há verdadeiros cânions nas relações interfamiliares.

Impossível não citar este parágrafo de Sônia Zaghetto

“O que aconteceu com Gene Hackman e Betsy não foi apenas uma tragédia pessoal, mas uma advertência dolorosa para a coletividade. Um retrato do que pode acontecer quando envelhecemos, o mundo segue adiante e nós ficamos para trás, presos em nossas decisões”.

         Neste sentido, nossos dois coletivos citados estão fazendo sua parte.

Já levamos algumas de nossas ideias para a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, assumindo o compromisso de colaborar com o relatório anual, na parte da “pessoa idosa”, como fazer a Introdução à reedição do Estatuto da Pessoa Idosa.

Voltando ao caso: ele nos mostra que a solidão, o abandono, o desdém, o descarte da pessoa idosa atravessa os continentes, as classes sociais.

Duas pessoas conhecidas foram tragadas por este infortúnio, que não foi uma tragédia (nisto penso diferente de Zaghetto), nem foi pessoal, foi um caso em que vários atores por omissão levaram a este desenlace.

Cabe aqui, uma frase nua e crua de Albert Einstein:

A fama é para os homens como os cabelos – cresce depois         da morte, quando já lhe é de pouca serventia.   

Indo um pouco mais adiante e talvez a fundo, Mário Quintana disse que era “Diálogo Bobo”. Parece que nem tanto assim:

Diálogo bobo:

– Abandonou-te?

– Pior ainda: esqueceu-me…

O casal Gene e Betsy não foi abandonado, foram esquecidos. O esquecimento foi seu fim. Um terrível fim.

Poucos lembraram sua difícil juventude.

Filho de um jornalista que abandonou a família, quando Gene tinha 13 anos. Hackman teve que conviver com o alcoolismo da mãe que morreu vítima de um incêndio que ela mesma provocou. O jovem deixou a casa da mãe aos 16 anos para fazer parte do Corpo de Fuzileiros Navais.

Simone de Beauvoir escreveu que há algo de “amedrontador em toda metamorfose”. Gene é talvez um exemplo: abandono do pai, mãe suicida, aos 16 anos fora de casa, depois veio o cinema, a fama, dois Oscars, desdém com a família, solidão, Alzheimer e morte no abandono e no esquecimento.

Há casos de filhos que tiveram de tudo dos pais, viraram ladrões deles e da sociedade, outros nascidos em “berço de ouro” viram bandidos e assassinos.

         A morte e o assassinato do casal Richthofen escandalizou a todos. A morte do menino Leandro também.

A morte de pessoas idosas famosas ou não que impacto tem em sua opinião? Já parou para pensar sobre isso?

Como dormirá Suzanne? Como dormirá Leslie?

Os netos que não ligam para a avó pensam em seu futuro de pessoa idosa? Não, certamente que não.

Por isso, a nossa intenção é de levar o “Movimento Sociedade sem Idadismo” pelo país afora como uma associação civil.

Na Prefeitura de Porto Alegre até a gestão passada tinha uma área no site, incompleta, mas sinalizava uma pessoa que cuidava do tema da Pessoa Idosa. Pesquisando a nova estrutura temos um Gabinete da Causa Animal (justo e correto), mas na Secretaria que cuida da Inclusão não há diretoria para a Pessoa Idosa. Eis como tratam das pessoas idosas em Porto Alegre. Logo, é fácil de entender que 76 mil almas tenham deixado a capital em 12 anos, a maioria indo morar em Santa Catarina.

No governo do Rio Grande do Sul há uma Secretaria de Inclusão, mas não há nada mais específico para a Pessoa Idosa.

É claro que nem em todos os municípios temos esta ausência de cuidados com as pessoas idosas. Mas são honrosas exceções.

O destaque que estamos dando ao caso Gene/Betsy é porque, vamos repetir, os problemas são planetários.

A cada duas horas, um crime foi cometido contra uma pessoa idosa, em média, no Rio Grande do Sul em 2023. Além disso, os 3.577 casos registrados (oficialmente) no ano passado representam um aumento de 58% em relação a 2019, quando houve 2.260 ocorrências desse tipo no Estado. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública (SSP).

É necessário falar algo mais? Sim, que em cada instância de governo haja um Conselho, um Fundo e um espaço no Executivo.

O município precisa ter um Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa Idoso constituído e ativo, que é o ente competente para deliberar sobre a aplicação e fiscalização dos recursos.

Além disso, as prefeituras devem constituir seu Fundo Municipal da Pessoa Idosa, para receber recursos tanto do Estado como da União e contribuições do Imposto de Renda.

Ainda há muito que falar, debater e organizar para começarmos a ter um mínimo de dignidade para as pessoas idosas.

O Tempo como a roda gira. Não para. Não vai parar. E o caminho para uma mudança se faz trilhando um a um dos elementos postos.

ADELI SELL é professor, escritor e bacharel em Direito.

Imagem: The Grosby Group – Internet

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