A leitura de “O velho e o mar” me ajudou entender as enchentes de maio. Escrito, em 1951, Ernest Hemingway mostra a luta de um velho pescador em busca da pesca. Ele apanha o maior peixe de todos os tempos. Luta contra força dele, é arrastado pelas águas. O velho continua na luta, vence e mata o peixe de 700 quilos. Ao tentar trazê-lo à margem, os tubarões avançam e o destroçam. Ele chega à praia apenas com a espinha.
O velho é reconhecido pelos pescadores e ajudado. Lembrei-me dos velhos de agora, lutando contra as águas barrentas e volumosas de maio de 2024. Velho, idoso, velha, idosa…. Pessoas Idosas… Que domaram o Tempo, o frio e o albergue improvisado. Aos pedaços, venceram. Foram vitoriosos, sobreviveram, porque houve solidariedade, como foi o conforto dos amigos pescadores ao velho pescador.
O conforto recebido pelas pessoas idosas desalojadas foi a quentinha doada, e às vezes o velho cusco salvo ao seu lado.
Os governos não os alertaram no momento adequado, nada fizeram antes para que o infortúnio não acontecesse. São os tubarões devoradores.
Depois da luta contra as águas, a busca dos albergues, as esperas sem fim por abrigos adequados, veio o “amargo regresso”.
O “amargo regresso”
Em 1978, o filme “O amargo regresso” deu a Jon Voight e Jane Fonda o Oscar de melhor ator e atriz. O filme começa com um jogo de sinuca (a imagem não é fortuita) e os “aleijados” pelas granadas jogam e falam dos infortúnios da Guerra do Vietnam. Em 2024, em junho, começa aqui o “amargo regresso” com a busca dos “desalojados” por suas casas, várias delas levadas pelas águas, outras danificadas, sujas de lama e nenhum objeto a ser salvo, esperando limpeza.
Além das Memórias que as águas sujas e turbulentas levaram para não se sabe aonde, havia o vazio: vazio da casa, vazio nas almas, o boteco da esquina também vazio. Nem jogo de carta, pois a mesa do jogo de damas da Praça as águas levaram. E me assomam perguntas: quem sabe quantos idosos acamados existem morando com suas famílias? Quem sabe quantos voltaram para morar sozinhos? Quantos foram ou são deixados em “geriatrias” que não passam de depósitos de velhos?
Registre-se: o regresso de um pobre à favela é diferente daquele idoso da classe média.
Entrar num bairro destroçado, com entulhos tomando ruas, pessoas labutando pela limpeza é uma cena de guerra também como as lembranças vistas naquele filme.
Este “amargo regresso” é viver os traumas, a saúde mental abalada, o vazio existencial. Muitas pessoas não resistem. Se uma senhora de 94 e um senhor de 100 anos.- como me contaram.- vão “começar tudo de novo” é uma brecha para construir os “caminhos da reconstrução”. É um raio de luz na fria capital. E uma mudança de mentalidade da sociedade, sempre tão difícil de acontecer, seria um luar nesta noite fria.
Perdi tudo, e agora?
Os autores que, em 2023, produziram o livro “Metamorfose da vida”, volume 1, conseguiram naquele momento dar aos leitores elementos essenciais e básicos sobre o “envelhecer”, sabendo das suas lacunas. Faltaram temas a tratar, como não se analisou a desgraça da Covid 19 sobre o mundo dos idosos. Só não sabiam, apesar de seus estudos e lides, o quanto ainda havia por ser feito.
Começou-se a planejar, entre eles e outros, o segundo volume, e surpreendidos pelas enchentes de maio, com a visível falta de preparo para lidar com as Pessoas Idosas, alguns daqueles resolveram lançar um livro de bolso “Perdi tudo, e agora”.
No mínimo já se teve o impacto da agilidade da resposta ao infortúnio. Quem leu o pequeno volume e retornou garante diz que foi um aprendizado. Dentre estes, destaco a falta de políticas dos poderes públicos. Vamos aos fatos.
Ausência de políticas públicas
A capital Porto Alegre, com o maior contingente de 60+ do país e com altos índices de longevidade, conheceu o desconhecido: o problema da falta de trato com a pessoa idosa. E isto que estamos falando da capital do “turismo de saúde” desde abril de 2003, quando um Manifesto foi lançado. Serviços de excelência em sua rede hospitalar de atendimento de alta complexidade, recebendo pacientes do Estado e fora dele, muitas vezes de outros países, dado aos tratamentos de alta especialidade. A catástrofe, porém, desnudou um lado precário e desdenhado: a atenção à pessoa idosa.
Ao estourar a catástrofe, somos colhidos pela falta de quase tudo em relação à pessoa idosa. Evacuações e salvamentos amadores, é certo que, com coragem e abnegação, servidores públicos e voluntários foram heróis. Porém, ficou evidente a falta de preparo da cidade e das pessoas para as intercorrências climáticas e os cuidados com idosos.
O mais chocante é que, no site da Prefeitura, há apenas uma página de “Atendimento ao Idoso”, sem quaisquer responsáveis, sem fone, sem whatsapp, sem e-mails!
Criou-se uma narrativa que, no episódio que vivemos e vamos viver por muito tempo, não há responsáveis e culpados. Há responsáveis. Não temos quaisquer políticas de atenção à pessoa idosa nem na capital nem no Estado. Logo, os gestores são sim os culpados.
Em Porto Alegre, no quesito de “Atenção ao Idoso”, como qualquer outro, os atuais gestores fazem de tudo para esconder fatos e omissões, omitem e mentem, falsificam dados.
Já nos setores privados, como as casas geriátricas, de repouso, hotelaria para idosos também não tinham o devido preparo, deixando pessoas idosas sem água, sem banho, sem se prepararem com geradores de energia pela falta dela. Sem luz à noite gerava-se um caos, colocando pessoas idosas em risco.
Somos levados a pensar na importância da criação de protocolos específicos de prevenção, preparação a resgates. Devem partir do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil, para então oferecer capacitação à sociedade, para os “bombeiros civis”, corpos de voluntários, cuidadores, parentes. Urge a criação de políticas e programas mais eficazes, incluindo a prevenção de acidentes, especialmente quedas e o desenvolvimento de produtos específicos para idosos, seja no cotidiano, mas em especial em situação de risco.
Em Porto Alegre, ficou evidenciado que as edificações antigas não têm condições adequadas para resgates de emergência, sobretudo no Centro Histórico, onde temos o maior contingente de pessoas acima de 60 anos.
O que despontou foi a solidariedade de todos os cantos, com seu voluntariado, este mesmo que criou um abrigo para as pessoas idosas. A Prefeitura não tomou qualquer cuidado ou atenção, deixando idosos, doentes, “acamados” largados em alojamentos com colchões rente ao chão, impedindo muitos de se levantarem sem uma mão solidária ajudando.
Disto decorre o repensar, a articulação da sociedade civil, capaz de, pela reflexão e ação, erguer políticas públicas, essenciais para uma existência digna aos idosos.
Legislações existem em todos os níveis, formalmente temos os conselhos que são afrontados pelos executivos. Isto nos deve levar a buscar os órgãos de controle e fiscalização para que sejam efetivos e respeitados.
O velho e a enchente
Ainda não fomos capazes de fazer as necessárias reflexões sobre a pessoa Idosa e a covid, deve ficar para o 3°. volume do Livro “Metamorfose da vida”, pois o Tempo nos cobrou falar das enchentes.
E neste país de cultura de preconceitos onde se avolumam as ofensas de todas as naturezas, o crime de etarismo se faz presente. É intolerável o descarte da pessoa idosa Precisamos encetar um movimento da sociedade civil, pois a pessoa Idosa por si só não terá a força necessária para impor as políticas públicas necessárias por uma existência digna. Assim, sejamos nós a partir de agora a faísca para o necessário movimento de efetivar os direitos das Pessoas Idosas.
ADELI SELL é professor, escritor, bacharel em Direito.
PS – Os livros podem ser solicitados pelo whatsapp 51.999335309. Serão enviados pelos correios.