Irene Genecco
Quando falo em século passado logo me lembra 1900, 1800. Falar em milênio passado, então, quase me retorna às cavernas. O Antes de Cristo ou os primeiros séculos Depois de Cristo não me visitam com muita frequência a memória. Priorizo eras mais próximas, 1200, 1500. Mas a era frequente e tenra mesmo, cheirando a ontem, é 2000, quando de repente, inadvertidamente, entramos no terceiro milênio! A verdade nua e crua é que viramos o calendário de milênio e de século apenas há 21 anos, o que ainda não foi completamente deglutido pelas gerações mais velhas. Toda esta faixa etária entre 20 e 30 anos são jovens nascidos no século passado e no milênio passado! Perguntam-se, certamente, como posso ter nascido no milênio passado e ter apenas vinte e poucos anos? Estas considerações ajudam a desnudar a bizarrice da dimensão temporal, e seus conceitos e preconceitos, a favor ou contra o peso do tempo.
Genial mesmo foi Einstein, ao constatar a relatividade do tempo entre espaço, movimento e velocidade, derrubando o reinado do tempo em si, reduzindo-o a relativo. Revelar que quanto mais veloz um corpo se desloca menos sofre a passagem do tempo foi extremamente revolucionário e fantástico com consequências drásticas no comportamento. O clima de fluidez contemporâneo, tendendo à impermanência de valores estáveis, demonstra bem o efeito do advento da relatividade no pensamento, refletido no comportamento.
Um mundo líquido reflete melhor esta fluidez do que um mundo sólido. Nossa pressa é insana, estamos sempre querendo vencer o tempo, sendo cada vez mais velozes. Vamos sempre acumulando afazeres e mais afazeres, na esperança de nos eternizarmos. Liquefazemos nossos dias no mundo virtual e nossa vida evapora com rapidez desmesurada.
Importante, porém, é perceber que existe um absoluto sustentando um relativo, sempre. Relativizar não é condenar algo ao limbo do indeterminado. A idade, por exemplo, não é algo absoluto, mas relativo ao vivido por alguém. Decretar que se é jovem ou velho nesta ou naquela idade é absolutizar o relativo. Isto engessa o espírito e embota a singularidade de cada um, e leva ao vazio existencial. A consciência de ser é o alicerce de onde tudo deriva. Este preâmbulo é importante para tecer algumas considerações sobre o etarismo, ontem e hoje, trazendo à tona a mulher de 30 de Balzac, para início de conversa.
Trintona, quarentona… Por que não a expressão vintona? Nunca se ouviu, quero crer. Talvez porque o percurso dos 20 anos se constitua na idade áurea, principalmente da mulher. Isto deixa muito claro o preconceito quanto ao limite de idade em que se permite à mulher ser linda e poderosa. Já nem falo em sessentona ou setentona, pois esse transcurso de vida demanda muito peito – e não é de silicone – para transmutar em vitória os inúmeros desafios – idade, gênero, grupo, etnia, clã, tribo, linhagem, família, estirpe, ramo, sangue.
Houve um tempo em que se falava em mulher de 30. Literariamente, na argúcia e sensibilidade de seu olhar, Honoré de Balzac exalta a maturidade, inteligência e independência da mulher, somadas à beleza feminina, no pleno vigor de seus 30 anos.
Porém, essa visão do autor ia contra o modo de ver da época, que tinha como padrão de jovem e linda apenas a mulher no decurso de seus 20 anos, ignorando também suas qualidades intelectuais ou de consciência de si mesma, em autoconsideração e liberdade própria.
Qualquer semelhança ainda hoje não será mero engano. Não se percebe que esse modo de ver tenha mudado radicalmente na sociedade. Infelizmente, nos 180 anos transcorridos da obra de Balzac, a questão de idade guarda ainda seus preconceitos, como peças de valor. No mundo real, a quem viveu ou vive esta idade, mulher de 30 teve e ainda tem um caráter pejorativo e nada honorável.
Vê-se, no presente, mulheres que se apavoram ao chegarem aos 30 anos, sem terem suas vidas direcionadas ainda. É aí que se manifestam também os primeiros sinais de decadência do viço físico. Envelhecer torna-se sinônimo de decrepitude, e todos seus sinônimos lembram falência. Sabedoria e maturidade não despertam cobiça em ninguém. Onde a sabedoria alimentaria o viço do imediatismo ou da competição? Sem competição, como alimentar o consumismo? Sem consumismo, e sem competição o mito da beleza, centrado na primazia das aparências, morre. Paro por aqui…
A expressão balzaquiana, contrariando o intuito de Balzac, sempre passou um gosto azedo de rejeição às trintonas, e depois às quarentonas, afogadas implacavelmente no poço da cultura etarista e misógina, fora outros tantos preconceitos.
Na década de 90, encarou-se já com certa tranquilidade os 30 anos, porém já nem tanto os 40. Terá sido isso positivo? Teremos conquistado mais 10 anos de valia, neste século? Ascendemos a uma mentalidade de maior maturidade? Nem tanto. O etarismo não cedeu, apenas se estendeu, dado ao avanço da tecnologia em estética, entre muitas outras áreas. O predomínio da aparência ainda reina.
A consciência de si mesmo no senso de uma beleza efêmera, propagada e travestida de felicidade, afeta e consome a dignidade humana, tanto em homens quanto em mulheres, mas mais cruelmente na mulher. Ela nos distancia de um conhecimento mais aprofundado de nós mesmos e nos banaliza. O problema não são os procedimentos em estética, a moda, o cuidado em vestir-se, o sentir-se bem. É a tirania do manter-se sempre jovem e belo limitado ao físico, imposto como único, ou o maior valor para alcançar a felicidade.
Nossa demanda, física e mental, é de baixa qualidade. Competição, fama e sucesso são nossos alvos, independentemente de quem ou do que estamos utilizando como escada. Transformamo-nos em máquinas. Somos supridos, programados e acionados de fora, por uma inteligência artificial, nunca pelo ímpeto de uma real necessidade. Não se trata de rejeição gratuita à tecnologia, bem-vinda e necessária à medida que evoluímos. Trata-se do que fazemos disso, amortecidos ou hipnotizados por um maravilhamento imediato, ou seja, sem a mediação do nosso senso de escolha. Vendemo-nos, a troca de um fútil prazer, e nunca nos perdoamos por isso. Ainda bem, porque essa intuição que nos condena traz um pouco de equilíbrio, embora aumente o peso das culpas.
Temos sede de substância, mas nos perdemos no vazio existencial do relativo e fugaz. Limitados ao endeusamento do corpo físico, ao patamar salarial, à zona onde residimos, ou ainda em que tipo de atividade profissional nos enquadramos, deparamo-nos diante de um angustiante desconforto interior. A falta de sentido que vamos moldando no nosso viver adulto nos trava. Mas afinal, no transcurso de nossa adultez, não deveria acontecer nossa grande conquista de liberdade, sabedoria, amor-próprio e discernimento de valores? É o momento de nos derramarmos no mundo e conquistar nosso espaço, e não nos aprisionarmos numa cela de hierarquias, preconceitos e alienação em massa.
O que tem isso tudo a ver com a relatividade de Einstein? Suponho que nada, pois estamos na instância da vontade e das escolhas pessoais, não na exatidão e imparcialidade da Matemática e da Física. Entendamos que no sítio do relativo existe o conveniente, e nele grassa a relatividade dos interesses imediatos de um poder alheio à equidade.
Século passado. Milênio passado. Teremos superado tal impasse, de lá para cá?? Talvez, mesmo que truncados entre relativo e absoluto. Quanto ao espírito da obra clássica A Mulher de Trinta, confiemos que, quase dois séculos transcorridos pela humanidade até então, homens e mulheres possam se somar ao transcendente espírito de Balzac, destarte sem sufixos preconceituosos e aviltantes do direito de viver honoravelmente.
Irene Genecco é gaúcha nascida em Butiá, na chamada região das minas de carvão. Perdeu os pais ainda criança – a mãe quando tinha apenas dois anos e o pai aos cinco, tendo sido adotada por uma família que seu próprio pai providenciou, poucos meses antes de morrer.
É formada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Estudiosa, diz que “nunca parou de estudar e aprender, seja em conhecimentos acadêmicos, seja no autodidatismo”.
O texto publicado aqui é parte do Livro “Um Olhar para Além do Cotidiano – Contos Urbanos e Outros Que Tais”, que é um convite a olhar simultaneamente para fora e para dentro de si mesmo, no concreto e no abstrato do dia-a-dia.
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